O Corpo
1. Introdução
A mãe inaugura a experiência do bebê no mundo exterior, com o toque e satisfazendo suas necessidades básicas. E o bebê antes de mais nada, é o desejo de alguém. E um longo caminho de experiências e desejos recíprocos aproximará ainda mais, o cuidador ao bebê, no percurso de amadurecimento físico e psíquico dele.
“Com efeito, a mãe escreve sobre o corpo da criança a série significante que a afeta em relação a ela. Não poderá fazer dele seu objeto erótico e isto gera um traçado descontínuo nas suas aproximação ao corpo da criança. (...)”. (Jerusalinsky, 2012)
Neurologicamente o bebê ganha “contornos”, recebe estímulos que se associam com significados, seja de afetos negativos ou positivos, ou reprimenda e todos os possíveis signos associativos. Ele irá incorporá-los e criar uma rede de arquitetura neural, conservando os movimentos e atitudes que se mostram mais adaptados às suas necessidades e demandas do mundo externo e assim, em sucessivas experiências sensoriais e fisiológicas, constituíra-se em um modo de ser – “cada dia mais sólido e menos plástico”.
E essas demandas sociais que visam constituir um sujeito – cheio de contornos adaptados ao ambiente, se tornarão as interdições exterioras. Àquelas proibições que preveem o “incestuoso” ou o demasiado – este originariamente de uma mãe que “ama demais”; vê no filho a possibilidade de um total controle e a possibilidade de criar em cada um dos possíveis contornos a imagem de seus ideais, físicos e psíquicos, fantasias aceitáveis ou inaceitáveis. O pai representa este interditor simbólico da sociedade, a figura que porá limites, ao desejo resultante do filho.
“(...) O [Outro] está incluído na superfície do sujeito; esta é a primeira forma de identificação através da qual o sujeito começa a se constituir como tal, numa forma que devemos chamar de incorporação (...) ”. (Lefort apud Jerusalinsky, 2012)
S. Freud (1856-1939) apresentou como origem central da Neurose em sua prática médica, o conceito de Complexo de Édipo – na representação da Mitologia Grega (Édipo rei), em que o filho se casa com sua mãe, e assassina o pai. E para Freud, “desejos e fantasias” dessa natureza são uma experiência comum aos seres humanos, convertendo-se durante um árduo processo nas leis primordiais e contratos sociais, e o reconhecimento psíquico da criança, na série de limites que a sociedade impõe.
Quando ele apresentou para a comunidade científica, a possibilidade da “sexualidade” infantil se instaurar já nos primeiros anos de vida de uma criança, gerou repulsa e ataques, buscava desvelar uma construção de forças obscuras por trás do psiquismo, e essa percepção também trazia consigo não só os perigos da geração de sintomas que surgirão em fases posteriores do desenvolvimento, mas na melhor compreensão sobre os cuidados da criança.
Nesta mesma exposição Freud apresenta todo o aparato instrumental fisiológico que estimula essa relação, e destaca-as como “zonas erógenas” – áreas do corpo da criança que recebem a carga de estímulos oriundos do mundo interior (fisiológicos) e exterior, áreas especialmente sensíveis à diferentes tipos de experiências. Os próprios excrementos do bebê e o controle do esfíncter criam essa representação, onde podem trazer desconforto para o mundo exterior, e logo ele perceberá este valor de tal poder – de ter capacidade de interagir com o mundo exterior em cada um de seus atos possíveis. Ou a urina, que muito além de esvaziar a bexiga, pode trazer alívio à tensões de fundo emocional.
2. Responsabilidade Terapêutica
E cabe neste processo, ao mundo exterior, o cuidado com a intrigada experiência psíquica associada à rede neurofisiológica por trás deste arranjo do desenvolvimento infantil. As experiências de “repressão” que o mundo adulto oferece, é antes de mais nada, o protótipo que será assimilado na criança (neurotípica ou neuroatípica). Pois a criança reconhecerá nas ações e cuidados do mundo exterior – um arranjo de possibilidades, e se valerá das vias de conexões recíprocas (deseja e é desejada). Onde pode se ver como objeto de um “amor desmedido” de seus pais ou cuidadores, a tal ponto que se constituirá como objeto de amor – e expressará essa posição; neste ponto reside o perigoso e evitável – deve-se então, estabelecer todos os limites necessários.
O cuidado primário é reconhecer em si – impulsos, e não estender ao outro à responsabilidade de aliviar seus próprios impulsos, um exemplo – um beijo que excede o cumprimento social, ou excede um gesto expresso de ternura, a linha por vezes é tênue, mas é claramente perceptível com exercícios diários. Refletir sobre, é o primeiro deles, especialmente quando o adulto é quem é capaz de controlar a dose deste afeto – o interditor.
O corpo do outro, inicialmente tem que ser visto como uma instituição privada (do outro), em qualquer que seja a sua demanda de cuidado, estabelece uma ligação com tons cuidadosos e zelosos, ofereça ao outro uma melhor percepção de si, já o excesso – em especial nas síndromes e no autismo (hipotonias e desarranjos sensoriais) trará apenas prejuízo à percepção do toque e do cuidado, reconhecendo naquele ato – uma desconfortável intromissão, e sobre a perspectiva simbólica, invadirá o mundo privado da criança, impondo à ela a percepção que seu corpo e o corpo do outro são “instituições públicas.
Os gestos sobre o corpo do outro, devem também ser vistos com o mesmo olhar sobre o nosso, em que não esperamos rupturas de direitos ou intromissões inapropriadas – cada gesto tem a capacidade de ser temerário ou sútil, a questão aqui é a dose. Um conceito também na psicanálise sobre o desenvolvimento do corpo associado ao aparato psíquico é o termo handling (D. Winnicott) – onde as rotinas diárias como trocas de roupa, necessidades fisiológicas e outros contornos são devidamente sustentados – a mãe (ou cuidador) cria o cenário mais real possível (necessidade objetivas). Onde o cuidador sabe auxiliar e saber sair de cena – integrando o corpo em diferentes funções e responsabilidade aquele corpo à criar um self – uma personalização.
O objetivo aqui é o cuidado com a aproximação; recorrer à educação – pedir licença (sempre que possível) – é o indicado. Ainda que para bebês e crianças com transtorno no neurodesenvolvimento a fala possa parecer uma convenção desnecessária, não é -, pois tudo aquilo que oferecemos ao outro é parte do processo terapêutico, L. Vygostky (1896-1934) destaca processos como esse no aprendizado e desenvolvimento infantil, nomeando como zona de desenvolvimento proximal – onde há uma capacidade tangível na criança de desenvolvimento, e será estimulado pelo adulto à alcançar essa capacidade diante de estímulos (uma intercessão entre a capacidade real da criança e a potencial).
3. Estímulos Físicos e Motores (A Personificação)
Para a mãe, as terapias corpóreas podem ser sede de um desconforto aflitivo, onde forçar o corpo de seus filhos, é macular os afetos por ela desprendidos sobre ele – sobre aquele corpo (incapaz de corromper-se). Essa mãe imagina que todos deveriam manter as marcas maternas invioláveis, naquilo que seu próprio ventre tornou inviolável. É mesmo aflitivo além do mais, para a família de uma criança – com paralisia cerebral (ECNE) por exemplo, que ela alcance autonomia em algumas funções motoras, rompendo assim, com a fantasia de dependência absoluta que a mãe estabeleceu com seu filho.
E o próprio choro e desconforto do paciente é sempre um desafio imposto para a mãe, acostumada a atender a cada chamado incondicionalmente e posta num jogo sem perceber – um ciclo, em satisfaz necessidades e cria demandas. Na clínica estes são só alguns dos arranjos possíveis, que se estendem ao desenvolvimento de todas autonomias – e facilmente notamos a lentidão dos pais em se despedir de seus filhos, a curiosidade de acompanhar um atendimento, as perguntas, em tom de afirmação – ele (a) chorou hoje? Ele (a) chorou hoje? E outras.
A dependência absoluta, no caso da imposição por condição neurológica, segue os rastros do desenvolvimento maturacional de um bebê sadio, ao adquirir autonomia. Para D. Winnicott (1945) a dependência absoluta, nunca será uma “independência absoluta”, mas o ambiente proverá as condições necessárias para o bebê (também o deficiente) vir-a-ser e constituir-se de forma potencialmente adaptada, constituindo funções e integrando-se, como parte do processo de personificação – deverá o ambiente oferecer as condições destes contornos conhecido como “holding”.
“O bebê que não teve uma única pessoa que lhe juntasse os pedaços começa com a desvantagem a sua tarefa de auto integrar-se, e talvez nunca o consiga, ou talvez não possa manter a integração de maneira confiante.” (Winnicott, 1945)
O ambiente não irá garantir que fará a criança, e terá ainda mais percalços de alcançar objetivos com o bebê e a criança deficiente, mas o ambiente fornecerá em ambos casos as condições necessárias para aflorar os potenciais dispostos naquela criança, e vale lembra que na ausência de condições físicas esperadas, podemos encontros sujeitos temperamentais e com motivações particulares, na impossibilidade de constituir o sujeito que não anda ou não fica de pé, podemos constituir o sujeito que é capaz de vagar sobre as relações.
Afetos
4. O Outro Como Destino
A natureza do afeto é justaposta ao corpo – como uma extensa cadeia, capaz de receber e perceber a natureza do afeto recebido. Em suma, o afeto é conteúdo e o corpo continente. Vale pensar sobre a família que responsabiliza o filho pela satisfação de suas necessidades afetivas – um filho nomeado, que desde cedo recebe a responsabilidade de consagrar a família com um feito heroico, ou simplesmente a mãe que dorme abraçada com o filho e facilmente o confundi com o urso de pelúcia (sem ter consciência disso) – com a função de abarcar as possíveis descargas aqui presentes.
Ao que parece, o mais comum é a necessidade de regulação constante, uma aprovação sentimental, em que a busca pelo outro – pelo sorriso, sutilezas, reduz a angústia e afasta por algum tempo a possibilidade de não ser amado. Ou seja, oferecemos o afeto de forma incessante, como uma planta constantemente regada. E para as plantas e para os humanos – o excesso não é solução.
“Existem mães cuja genuína capacidade de amar é subdesenvolvida, atrofiada ou envenenada e que, como compensação de sua anti-realização, arremessam-se sobre seus filhos não para lhes dar excesso de amor, mas para preencher seu próprio vazio através do filho, este não é um mimar real mas um pseudomimar”. (Neumann, 1999)
Em outras vezes o excesso de afeto – a “maternagem” mal percebida e não compreendida, torna-se a compensação dos excessos contrárias, os pais omissos ou rígidos – compensa em outros atos – com excessos, de brinquedos, consumíveis e amor, sem se preocupar com a marca negativa, ou o desgaste – pensa-se aqui na possibilidade da criança ser posta corriqueiramente em uma experiência de estresse constante (tensiona e alivia) – ou o “beija e assopra”. E não esperamos outro resultado final, para essas experiências, a constituição de emoções intensas e rompantes incontroláveis na criança e nos adolescentes (novamente – um arranjo possível no desenvolvimento típico e atípico).
Confunde-se facilmente sobre a responsabilidade do cuidado, o papel do afeto, onde o cuidador não substitui os pais onde eles não estão preparados (como ensinar ou promover estímulos estruturados), mas substitui-se os pais e seu dever primário – o de amar, é comum esta situação, onde a meta buscada nunca é atingida, pois figuras secundárias, podem até alcançar status elevado na representação de uma criança e consolidar um vínculo substituto, mas nunca substituirá todas as funções arcaicas, das quais já foram submetidas à “incorporação infantil” àquela mãe dos primeiros gestos.
5. Apego
Veremos além do mais nestas crianças a contra reação, ao excesso de amor; é importante a compreensão, que qualquer experiência que transpassa ao sujeito é digna de elaboração, ou digna de deixar sua marca – como única marca de vir-a-ser. Sobre a perspectiva de J. Bowlby (1907-1990), estas marcas tornam-se uma forma de apego ao outro, ou conceber os outros. Como parte das metas motivacionais humanas.
Bowlby hipotetiza em sua teoria do apego, em que a necessidade de constituir o apego de uma criança com seus cuidadores, e a responsividade dos cuidadores é um elo essencial do desenvolvimento evolutivo, e neste caso diante da suposição de modelos de apego – estabelecidos pelas figuras primárias da vida da criança.
Conceitua-se que cada criança possa ter maior facilidade ou dificuldade de se adaptar em novos ambientes – por exemplo. Ou reagira de formas esperada em “situações estranhas” – na adaptação de novos grupos de escola ou a novos lugares. No exemplo abaixo temos uma breve descrição do padrão seguro de apego, ideia também corroborado por M. Ainsworth (1978):
“o padrão seguro corresponde ao relacionamento cuidador-criança provido de uma base segura, na qual a criança pode explorar seu ambiente de forma entusiasmada e motivada e, quando estressadas, mostra confiança em obter cuidado e proteção das figuras de apego (...). As crianças seguras incomodam-se quando separadas de seus cuidadores, mas não se abatem de forma exagerada. (...) as características da interação entre o cuidador e a criança, nesse caso, são de cooperação, com instruções seguras e monitoração por parte do cuidador, ao mesmo tempo em que este encoraja a independência daquela. " (J. Dalbem & D. Dell'Aglio, 2005)
Há outros padrões de apego – como o resistente ou ambivalente, evitativo e o padrão desorganizado, mas o importante a ser destacado neste ensaio, é sobre algumas das possibilidades de deslocar no outro nossos conteúdos – o bebê e a criança, se mostram frágeis por sua natureza constitucional, e com a presença de algum transtorno tornam-se ainda mais vulneráveis em diferentes níveis, e por diferentes fatores, devendo a nós compreender sobre os limites, e aquilo que é dever da criança receber de material afetivo.
O conceito central que aborda conflitos e desconfortos de base emocional de pais e cuidadores para a criança é a transgeracionalidade, pois além da responsabilidade de abarcar os afetos diretos, essa criança recebera os (até aqui) imutáveis padrões de apego e outros contornos emocionais e comportamentais dos pais. Há outros “papeis” por trás de toda formação de vínculo, como uma árvore com diferentes raízes e solavancam o solo, a identificação, a transferência, e mais, mas o valor reside na existem destes mecanismos que devem ser igualmente “controlados” pelo cuidador, e percebidos quando excedem a compreensão – “apenas são”.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
ARAUJO, C. A. A perspectiva winnicottiana sobre o autismo no caso de Vitor. Psyche (São Paulo) [online]. vol.8, n.13, 2004.
AINSWORTH, M. Attachments beyond the infancy. American Psychologist, vol. 44, nº 4, 1989. (Originalmente publicado em 1963)
BOWLBY, J. The influence of early environment in the development of neurosis and neurotic character. International Journal of Psycho-Analysis, vol. 21, 1940.
DALBEM, J. X.; DELL’AGLIO, D. D. Teoria do apego: bases conceituais e desenvolvimento dos modelos internos de funcionamento. Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 57, n.º 1, 2005.
NEUMANN, E. A grande mãe. São Paulo: Cultrix, 1999.
FREUD, S. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Originalmente publicado em 1905)
FREUD, S. A dissolução do complexo de Édipo. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Originalmente publicado em 1924)
JERUSALINSKY, A. Psicanálise do autismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.
VYGOTSKY, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. Em A. R. Luria, L. S. Vygotsky, & A. N. Leontiev. Psicologia e Pedagogia I: Bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. Lisboa: Estampa, 1977.
WINNICOTT, D. W. Observação de bebês em uma situação estabelecida. In D. W. Winnicott. Textos selecionados da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. (Originalmente publicado em 1941)
Conteúdo apresentado para a equipe terapêutica da Associação Brasileira de Assistência e Desenvolvimento Social - ABADS em 23 de junho de 2020.
DELIMITANDO FRONTEIRAS - O EU E O OUTRO (CORPO E AFETOS)
Psicólogo Felipe A. Zamboni (2020)
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