As ondas quebram vagarosas sobre o banco de areia e sal. A noite está em seu ápice escuro, pouco antes do amanhecer; a embarcação de madeira talhada pelos mares descansa ainda amarinhado - em sua proa o nome do rei destes expedicionários - Príncipe de Astúrias! Em seus porões porções de ouro sem dono, quinquilharias, e outros valores, que só possuem valor a quem lhes creditasse valor.
O Capitão ordena:
- Vamos homens, antes que amanheça já teremos que ter armado nosso acampamento.
- Vamos homens!
Este porto não possui agradáveis companhias a viajantes cansados, tão pouco qualquer companhia, a não ser insetos, bestas silvestres, sapos, gafanhotos e feras acordadas na noite!
O criado-de-bordo empilhava gravetos para a primeira fogueira, enquanto o mestre coordenava a saída da tripulação com os bens necessários do navio, assim é, atracaram nesta noite, naquela baía.
Pedro um marujo então soa a Afonso, o marujo de olho esquerdo cansado:
- Esse lugar me dá medo, já rumei a leme livre sobre esse horizonte e lembro, há um casebre enfumaçado de mil cores nessa selva verde e densa!
Afonso olha com seu olho direito ao alto da muralha viva e se arrepia, o baú quase cai ao chão com os pertences do capitão do Príncipe de Astúrias!
- Homens, procurem comida!
Animais do mar, do ar ou da terra, não são facilmente capturados a essa hora. O criado Escobar audacioso e buscando uma promoção se engendra na mata, logo encontra uma árvore de frutos, um pessegueiro de furta-cor, sua mão vai ao alto, alguns pêssegos depois - um sutil toque em seu braço, uma cobra em sutileza entrelaça em Escobar, fazendo movimento lento - o seduz. Quando Escobar nota, recolhe seu braço, e a cobra soa seu chocalho, lhe dá um distante beijo com o trepidar de sua língua!
Olhos nos olhos, mas Escobar volta com seu cesto de costas - medroso ou amedrontado - foge da mata e da cobra! Logo Escobar solta o cesto na areia e diz a todos tomarem cuidado com os animais peçonhentos - enquanto as estacas cantam ao som da madeira e do metal, cordas esticadas e a âncora postada!
Em meio a fogueira, a tripulação bebe, se diverte, fala alto e canta. Canecas aos céus, e a súplica por mulheres boas ou sereias tolas! O capitão embebido em rum vacila, pois fica de costas ao mar - qual capitão dá suas costas ao mar?
Neste enquadramento uma Baleia hasteia ao alto em curva e lufa seu aos céus, um esguicho ao alto saindo do mar!
- Marujos, hoje vocês estão livres para o descanso, amanhã cedo iremos buscar todo tesouro que pudermos!
- Pois sim, capitão!
Enrijecidos imediatos fazem continência ao capitão, mesmo que todos estivessem embriagados! Enquanto os menos atentos comentavam:
- Pelo menos o cheiro que vem dessa mata é doce e bom!
E logo esses dois completam:
- Não vejo a hora de acordar e caçar um animal gordo, saboroso, de carne macia e tenra!
O cirurgião da embarcação passa com seu cantil vazio e diz:
- Cuidado vocês, ao tramar contra a vida e a mata, principalmente à noite, pois é sempre a mata que em todo tempo trama contra vocês!
A fogueira encolhe sobre o vento nesse momento, quase apaga sua chama com a sombra negra que passa.
O místico cirurgião pronto a continuar seus passos ainda ouve:
- Ei açougueiro, onde vai a essa hora com esse seu cantil vazio?
- Buscar água doce!
- Cuidado aí açougueiro, ouvi dizer que nessa selva moram duas irmãs que devoraram o próprio pai e adorariam devorar um homem gordo como você!
Outro marujo acrescenta mais crença a discussão, então fala em seu dialeto um tanto bárbaro como um tanto espanhol...
- Ouvi também dizer que elas já foram vistas nos mares glaciais do norte da terra!
Outros dizem:
- Pois são muitas histórias, elas já foram vistas no gélido fim do mundo Austral, e também nas matas da Ásia e da África!
- Deixem de bobagem, é uma lenda o paradeiro dessas irmãs!
- Todos sabem que quem as vê, jamais voltam a ver coisa alguma.
- Muito menos podem dizer para mais ninguém que as viram, todos que as vêm somem, e nem os ossos são encontrados, são jogados ao fundo do mar!
Completa assim o Timoneiro da embarcação!
O cirurgião investe sobre poucos metros na mata e encontra seu procurado riacho. Enche seu cantil, bebe um tanto dessa água - nessa terra, e outro tanto despeja no chão, ajoelha-se, faz sua prece noturna, e murmura em voz baixa.
- Deixo essa porção de água nessa terra, espero que em centenas de anos nasça aqui uma árvore!
- E eu voltarei para descansar em sua sombra, neste mesmo lugar. Quem sabe um dia!
No final de sua prece um som de galho denso amalha seus pés. Enquanto ele é arrastado não consegue gritar - no mesmo tempo sua língua é cortada. Uma força lhe agarrou por trás e pela frente, enquanto apenas a poeira levanta do chão seu corpo é puxado por um cavalo, e duas mulheres risonhas se divertem - risos que ecoam pela copa de cada árvore.
O timbre delas espantam até as aves adormecidas - em seus quartos de madeira, barro e mata. As irmãs Aurora o levam até o fúnebre covil, poções, loções, cheiros e cores, místicas formas e adornos! O caldeirão está em fervor como em uma sopa viva e verde!
O cirurgião não pode correr e gritar. Uma irmã Aurora é bela; toda a forma do amor, é a sábia dos cheiros e das poções, escraviza pelo amor, é rainha das águas. A outra irmã é rude, toma a forma dos animais, das feras e bestas, conhece os atalhos das do medo e reina sobre o vento. elas dominaram esse homem dessa forma - encanto e medo!
Antes de virar sopa seus olhos são retirados, elas riem e dizem:
- Para onde você vai não precisa ver nada, não há nada a ser visto no seu novo destino!
Riem e gritam, evocam ao alto - o desejo saciado.
Em um rápido solavanco ele é arremessado ao caldeirão, se mistura a grandiosa panela fervilhante. Elas dançam em torno do fogo, a clareira da chaminé sobe ao alto, a fumaça, lilás, azul, verde, amarela...
No alto o triunfo das irmãs Aurora, devoradoras de gente!
Todos dormem a essa hora, embriagados e cansados, enquanto alguns pássaros já confabulam o canto da alvorada, prontos para acordar a selva!
Então ratos! Eles começam a invadir a embarcação, em busca de novos temperos, e levam além do mais um tanto de sobrepeso. O capitão ao lado de sua adaga desperta. Ao olhar para o lado se assusta e procura sua tripulação - todos sumiram!
Ele levanta em meio a presa e ao desespero - corre com todas as suas navalhas e seu mosquete para a mata. Acredita num motim, mas nada encontra.
...por fim grita!
- Tripulação se apresente!
- Tripulação se apresente!
- Eu vos ordeno! Malditos!
Para ele nada é compreensível; para onde todos foram? Como todos acordaram antes de quem sempre acorda primeiro? Então ele retorna ao navio, e os encontra, ou pelo menos o que acha que era a sua tripulação. Todos caídos aos montes em cada canto, todos sem vida, sem olhos - devorados.
O capitão está em desespero. Salta da polpa do barco. E com sua espada corta a âncora!
Tomado pela angústia de perguntas!
- Por mil maldições dos mares, quem nos atacou?
- Que força seria capaz de fazer isso?
- Trovões agora eu ordeno! Que saiam de meu caminho!
...Assim parte o Príncipe de Astúrias, o barco e o capitão somem lentamente em meio a tempestade no horizonte. Para nunca mais serem vistos, nem os corpos de sua tripulação, nem a história dessa expedição!
AS BRUXAS DOS MARES - OS VIAJANTES DE ASTÚRIAS
Felipe Anderson (2015)
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