Anjos caíram do céu, anjos soltos, rebeldes sem causa, voadores sem asas, não respeitaram seu Deus. Fugiram das órbitas - caíram sobre os projetos, caíram sobre a mesa posta, caíram sobre nosso futuro.
A mesa, coberta por um forro de bordado bem traçado, ao certo feito por uma mulher dedicada, mãos delicadas. Sua linha, sua costura e seu traçado, repetiu cada movimento, constante e mais, nela há pratos, detalhada porcelana, sutileza dos desenhos de quem fez, finos traços, brilho enigmático. Essa mesa nem deveria chamar mesa - deveria ter o nome de cada um que fez, de cada detalhe nela, cada objeto sobre a mesa.
Deveria ter o nome de quem cozinhou o prato - quem cunhou o bordado - quem forjou o metal do garfo - quem envernizou a tablado - quem descobriu o fogo - quem assou o cordeiro e de quem caçou o cordeiro - da senhora que ainda está na cozinha - os donos da mesa - os donos do lar.
São seis cadeiras, família sentada, lenta brisa levanta a cortina. Os primeiros sons e um cheiro bom, mais uma brisa e lentamente a cortina desnuda o sol, iluminando a mesa, o campo, as folhas vivas, que estão sobre as colinas e quanto mais a cortina se levanta mais lentamente o garfo vem a boca, mais feliz fica Ribeirão. Todos de boca aberta e garfo na mão.
A boca se abre de encontro à carne. Um vazio, um grande espaço vazio, um som de frequência inaudível, apenas o estalo e todo bordado se desfez, todo capricho se foi, tudo aquilo se desmontou - se perdeu.
Anjos caíram do céu!
Só aquela terra sabia; que sabe, isso há de acontecer, tudo aquilo há sempre de acontecer. Seres vêm e vão, rasgam a carne de seus irmãos, metais forjados, armas e fogos controlados, poderes comprados - casas, cavernas e tocas espalhadas - bicho homem, bicho gente, bicho outro. Usam suas forças, seus pensamentos, seus instintos, seus instrumentos; consomem e consomem, não resta cedros no campo, só os últimos dentes afiados.
Algum anjo se rebelou no céu, um planeta negro caiu. A terra já ouvira antes sobre aquilo - já ouvira por diferentes nomes negros, sobre suas asas flamejantes, sobre seu júbilo e seus chifres pontiagudos, sobre sua força. Aqueles que sabiam deram nomes e falaram aos ventos, após os ventos, escreviam, diziam e repetiam, até chegar aos livros, até se perder nos livros, até ser esquecido pelo vento e pelos homens que deram nomes, desde o início dos tempos.
Talvez eles tenham dito que é um portal na terra, no espaço - no tempo, que se abrirá e sairá fogo. Outros disseram que Deus mandou sua ira em forma de anjo negro, para subjugar a tudo e a todos, mas, e se for, e se é só uma rocha sem órbita, um filho de Saturno perdido - sem força para voar, cansado de planar, só um alimento para a terra que quer crescer, se multiplicar. Não se soube, não se saberá.
Foi só mais um dia na incompreensível hierarquia dos anjos.
Dessa vez, não sobrou ninguém para saber, descrever, só ira, só júbilo, só árvores gritando. Flamejantes pastos e os gritos das vidas viraram ecos parados. O que não era fogo era mar e se nada fosse era poeira no ar. O claro da luz almoçou a mesa, tomou conta daquela mesa, da última refeição sem oração, entrou pela janela a luz do anjo negro caído; de um anjo esquecido.
Só a Terra é capaz de conta essa história. Só a Terra é capaz de deixar nos seus ventos essa história - gravar na sua terra essa história. Só a Terra é capaz de evitar essa história.
ANJOS CAÍRAM DO CÉU
Felipe Anderson (2015)
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